Andando mais com ouvidos do que os pés, o rapaz ia sendo conduzindo pela música que tocava.
- Quanto é o chopp? , perguntou o rapaz
- Quatro e cinquenta! – respondeu o garçom de olhos esbugalhados e ágeis – Senta! Veja o cardápio! Quer alguma coisa pra acompanhar o chopp?
Não teve tempo de responder se a oferta o atraíra, o garçom já havia decidido isso por ele. Diante da imposição, o rapaz sentou-se à mesa e ordenou que trouxesse o chopp bem gelado. O outro respondeu com grande entusiasmo assegurando que o pedido seria atendido. Rapidamente se emaranhou por detrás do balcão, na parte de dentro do bar.
Acabado este rápido diálogo, podia agora dedicar sua atenção à música que tocava.
A disposição das mesas era um tanto quanto confusa. Eram espalhadas de acordo com o espaço disponível nesta área aberta do bar, de modo que cabiam mais ou menos umas 15 mesas no local. Todas apertadas umas as outras, provocando certo desconforto nos que ali estavam por ter de se esmagar entre a cadeira e a mesa de modo milimétrico a não invadir o espaço dos vizinhos.
O rapaz, de 27 anos, estava sentado sozinho em uma mesa para quatro pessoas que ficava na última fileira. Conseguia enxergar os músicos entre cabeças e conversas alheias. Entre espaços esticava o pescoço a procura da melhor posição para acompanhar o modesto show. A maioria não estava a prestar atenção nas músicas. Falavam mais alto de acordo com o volume da mesma e as gargalhadas se faziam mais presentes e escandalosas a cada copo derramado.
Achada a melhor posição, o rapaz pôde acompanhar com eterno agrado a moça que cantava magnificamente ao lado do violonista. Era bela e tinha algo que cativara o rapaz. algo além dos lindos olhos e da boca que sorria ao cantar. Ar misterioso e encantador, seu corpo transmitia sensualidade por simples movimentos dos braços e das mãos ajeitando o cabelo cacheado.
Acompanhando com os olhos, quase que esboçando algum tipo de olhar sedutor do qual não dominava, tentava de alguma forma se fazer notado pela cantora.
A cada instante tinha a certeza de que não poderia achar um defeito nela, uma paixão pura e rápida como um raio. Fantasias lhe vinham à cabeça. A moça, que muito provavelmente tinha semelhante idade à dele, preenchia todos os seus requisitos para uma mulher ideal. E com uma voz daquelas... não haveria como se estar triste em sua companhia. Seria como acordar ouvindo os anjos!
Entre suspiros e desejos, acompanhava-a cantando bem baixinho, esperando qualquer tipo de retorno. Ele queria que ela o notasse, e que, mesmo que não tivesse motivo aparente, algo a chamasse a atenção para ele. Qualquer coisa que lhe fizesse diferente, talvez o modo de olhar ou a maneira como se vestia. Qualquer coisa mesmo, que entrelaçasse os dois em uma história de afeição e admiração.
Certa hora parecia que seu objetivo tinha sido alcançado. Num momento mágico os dois fitaram os olhos um do outro e de certa forma concordaram que estavam satisfeitos com a situação. Um por ouvir boa música cantada por bela voz e a outra por notar que sua performance estava sendo acompanhada com admiração sincera.
Este acontecimento durou cerca de 15 segundos sendo interrompido por mãos estabanadas do garçom, que descia o chopp à mesa do rapaz com mais pressa do que cuidado, deixando cair um pouco da espuma no papel que forrava a mesa. Rapidamente limpou sem maiores problemas, e na mesma agilidade saiu para atender outra mesa que o chamava.
Este fato bagunçou os sentidos do rapaz que estava compenetrado no momento de reciprocidade entre ele e a cantora. Com a chegada do garçom desviou a atenção assustado perdendo de vista a moça por míseros segundos, os mesmos suficientes para que os olhares cessassem e a apresentação seguisse da mesma maneira como vinha acontecendo antes.
Foi quando uma das músicas terminava que veio um grande susto seguido por sentimento de extrema extasia para o rapaz.
- Agora vou cantar uma música que tenho um carinho especial - anunciava a cantora –
Esta música é de uma natureza fantástica, sendo que o autor teve grande sensibilidade ao transpor a ótica de um apaixonado em versos. Infelizmente ainda não tive o prazer de encontrar o compositor desta bela música. Cantaram-na em uma roda de amigos certa vez e desde então não a esqueço! Só o que sei sobre ela é canta-la, e que o autor desta belíssima canção chama-se Lucas Lazzari, ou Lazzarem, algo do tipo. Não souberam me dizer... mas então...vamos lá!
Mal podia acreditar, ele não conseguia crer. Aquela música mencionada com tanta emoção pela moça era uma de suas composições! Era dele, Lazzari! Sentado na ultima fileira de mesas do bar.
Uma enorme felicidade se estendeu no peito do rapaz que não conseguia conter a ansiedade. Já havia planejado tudo. Pensava, aflito:
“Ao terminar esta música, vou até ela e me apresento como o mencionado compositor. Não apenas será um ponto de partida para uma conversa como também um ótimo passo a meu favor, já que ela gostara tanto de minha música! Ah sim! Tudo vai dar certo! Espero... Vamos...!Quero lhe contar!”
E então feita a introdução instrumental pelo violonista a bela voz começava a aparecer. Era lindo, lindo! Nunca ouvira sua música tão bem cantada. Também pudera, ela (a moça) era perfeita!
Ouvindo com profunda admiração, ia cantando e acompanhando a letra que ele sabia mais do que ninguém .
“...Sereis minha vida enquanto eu viver
Inventarei outro mundo se for por você
Cantarei suas conquistas como a(minha) maior alegria
Recolherei suas lágrimas de terror e fadiga
Te entregarei os meus braços, minha boca e olhos
E enxergaras meu amor tão sincero e simplório...”
Sentimentos fortes dominavam o rapaz, já estava fora de sua consciência mergulhando em sonhos e planos. Ia se levando com a música e a voz da musa. De súbito voltou a si e raciocinou rapidamente como quem planejasse da forma mais bem elaborada já existida. Calculou que a música estava para acabar e que iria contar-lhe sobre sua composição.
No mesmo instante deu sinal para o garçom para que fechasse a conta rapidamente. Não entendendo bem o sinal, este mesmo foi até a mesa para se certificar sobre o que o freguês pedia.
- Pois não senhor? , disse o garçom
- Fecha a conta pra mim lá por favor, bem rapidinho! , deu uma piscada de olho como que educadamente
- Xá comigo camarada! – e assim saiu para executar a função.
Passado alguns instantes a conta ainda não havia chegado e o rapaz já estava angustiado e com pressa. A música se acabou e surpreendentemente foi recebida por entusiasmados aplausos, muitos até se levantaram para tal, até mesmo aqueles que conversavam sem olhar para os lados pararam para apreciar aquela canção. Chegou até a ver uma senhora de uma das mesas elogiando e perguntando mais detalhes sobre a música que a encantara.
Foi quando a cantora agradeceu e anunciou que esta teria sido a última música do show.
- Muito obrigada, gente! É um prazer ver que as pessoas gostaram. Principalmente uma música assim tão bela, muito legal mesmo. Obrigada! – disse a cantora a todos do bar -
Bom, o nosso show hoje acaba por aqui, tenho que ir correndo pra não chegar atrasada em outro compromisso... Foi um prazer pessoal, até a próxima!
E se despedindo rapidamente o violonista foi ajeitando com extrema habilidade o violão e alguns outros poucos equipamentos que pertenciam a eles numa espécie de sacola. Foi colocando tudo às pressas, assim como fez a cantora. Parecia que estavam atrasados para um outro show.
Ao ver tal cena o rapaz ficou ainda mais nervoso, temia que seu plano falhasse. A conta não chegava...
Quando finalmente decidiu ir logo ao encontro da moça para conversar foi puxado meio que como um solavanco por uma mão.
- Senhor, pode incluir os 10%? – era o garçom perguntando
- Pode... Pode sim! – respondeu o rapaz com confusão e pressa
Já ia se direcionando novamente para a moça e o garçom o interrompeu novamente
- Você vai pagar em dinheiro ou cartão?
- No cartão! – respondeu impaciente o rapaz que não havia levado dinheiro em espécie na carteira
- Débito ou crédito?
- Débito! – respondeu quase que com raiva – Senhor, será que podia ver pra ir rápido? Estou com um pouco de pressa!
- Sem problemas, camarada! Só vou precisar que você venha até ali no balcão comigo porque a maquininha ta dando um problema danado... Só você vendo, outro dia um cliente pediu pra pagar no cartão, trouxe a maquininha pra ele e ficamos mais de 15 minutos tentando fazer ela funcionar. Mas a diabinha cisma de funcionar só lá dentro! Eita tecnologia...
– Depois de algum devaneio, o garçom voltou ao objetivo - Pode vir aqui! Me acompanha!
A cada palavra que o garçom falava o rapaz ficava mais nervoso. Mas que diabos esse garçom ficava falando enquanto ele estava com pressa! Seguiu-o com intensidade para resolver logo a questão. Rapidamente em uma olhadela viu que os músicos ainda lá estavam arrumando suas coisas. Calculou que rapidamente iria ao seu encontro e de repente até os acompanhava até o destino deles.
Dentro do bar, no balcão, ele enfiava o cartão e esperava o pagamento se efetuar.
- Xi, mas não é que a diabinha até aqui tem dado problema! Vamos ver se ela volta a funcionar logo! – disse o garçom num tom meio de que puxando conversa com o rapaz
- Ah meu Deus, mas que saco! Espera, vou ali resolver uma coisa e já volto! – disse o rapaz
- Ó! Espera ai! Agora deu! , exclamou espantando o garçom
Olhando frequente e impacientemente para fora o rapaz digitou sua senha. A maquininha processou e dentro de poucos segundos já estava emitida a notinha.
O rapaz tremendamente aliviado quis sair correndo atrás da moça, mas ainda teve que se livrar do garçom que insistia na conversa.
- E você, gostou do bar? Essa música estava muito boa não é mesmo? Essa última que a mocinha ali cantou foi linda. Mas linda mesmo!
- Pois é! Com certeza! Desculpa-me o ar grosseiro, mas tenho que ir. Muito obrigado e bom trabalho. – disse o rapaz apressadamente rumo à “liberdade”
Saindo da parte de dentro do bar, o rapaz apenas conseguiu ver a pontinha do violão indo-se embora pela porta distante em velocidade impressionante.
Não conseguira acreditar como teria perdido aquela oportunidade. Ainda tentou em vão encontra-los fora do bar, mas nem sinal dos músicos.
Uma enorme decepção tomou conta de seu coração. De seu coração não, de seu peito. E doía! Uma dor que fincava como uma estaca e ia anestesiando todo seu corpo numa sensação de vertigem, como quem tenta induzir um desmaio.
Estava ele agora, no meio da rua escura meio atônito, sem saber por onde rumaria naquele momento. Não existia nenhum caminho certo. As nuvens encobriam quase todo o céu, quase que armando chuva. As estrelas estavam embaçadas, com um brilho fosco e sem graça.
Saia do bar como havia entrado. Uma sombra no passeio. Não como Lazzari, mas ainda como um rapaz. Não teve o reconhecimento por sua música que encantou a todos os presentes no bar. Não fora reconhecido pela encantadora moça por quem ficara fascinado longos instantes sentado à mesa. Era poeira levada pelo vento.
“Passou”, pensou ele. Não era de se arriscar tanto. Mais tarde pensou mesmo é que era grande besteira, que o que aconteceu foi o melhor. O prevenira de criar expectativas em cima de algo que era muito pouco provável acontecer. Melhor ainda, o prevenia da humilhação, de se cometer um equivoco e fazer papel de bobo.
- É. Talvez seja assim mesmo. Talvez algumas pessoas venham mesmo para ser sombras, passando entre as outras na calçada. Não é para se angustiar, cada um tem sua sorte. E a minha é esta ai...