- Meu senhor, me desculpe incomodar, mas será que eu poderia ter um minuto de sua atenção?
- Pois não... – respondeu impassível o homem sentado em banco de plástico de uma rodoviária
- Pois bem, é que eu tô passando dificuldade. Tenho uma filha, de 6 anos... – Ia dizendo palavras atrás de palavras quase que ensaiadas olhando para os lados e para cima –
Ela esta passando fome e eu já não sei mais o que fazer! Por isso peço sua ajuda, preciso muito de um dinheirinho pra comprar qualquer coisa... qualquer coisa só pra encher a barriguinha da minha princesa. Confesso a você, eu mesmo não tenho comido, mas hei de passar fome com menos desgosto se ela tiver de comer! Será que você teria algum trocadinho pra me ajudar, moço?
O ambiente era pesado. Barulho do trânsito, os ônibus apressados querendo partir e os passageiros lentos à procura do local de embarque. A moça da locução anunciava com uma voz de dor de barriga que o ônibus com destino ao Vale da Felicidade já estava partindo, quem quisesse que se apressasse. Nas lanchonetes ao redor viam-se pessoas rindo de boca cheia, apontando mais um salgado, entregando cédulas de dinheiro rasgado e seguindo para algum outro caminho. O chão, mesmo que tivesse acabado de ser lavado, aparentava estar imundo e a iluminação escassa contribuía para a sensação de sujeira.
O homem, de banho tomado e trajado de bermudas e camisa confortável, olhava atentamente para o indivíduo sentado ao seu lado, com olhar distraído e que, sôfrego, pedia com as mãos.
- Meu senhor, você me pediu um minuto de sua atenção. Pois então, não foi o que ocorreu. Ouvi você falar por aproximadamente 20 segundos, e isso para mim meu caro, é um profundo desrespeito, pois dediquei a você tempo de minha atenção que obviamente foram desperdiçados. Depreendo, portanto, que você é um mentiroso! E se é assim que deseja ser, eu sinto, mas não creio mais no que me fala. Vá embora, por favor!
O pedinte confuso, não tanto pela fome que o consumia até os olhos mas sim pela não compreensão do que tinha ouvido, pôs-se a andar vagarosamente e sem esperança para as escadas iluminadas por um feixe de luz do sol. O homem sentado, acompanhou-o com o olhar meio impaciente e esperando um desfecho para o que havia acontecido.
Foi quando pôde observar ao longe as costas do pedinte andando miúdo e com os ombros soluçando de chorar. No reflexo, contraluz de fora, viu na sombra ele a estender a mão para uma outra, uma pequena mãozinha.
Mas era de se amargar. Como havia de ter faltado ajuda a aquele pobre homem desesperado, que apenas queria um minuto de descanso naquele longo tempo de sofrimento!
Esperando a hora de seu ônibus partir, ele começou a ficar inquieto em sua cadeira. Aquilo ficava marcado e não lhe saia da cabeça. Uma espécie de dívida pessoal havia se estabelecido em sua mente, e precisava quita-la.
Olhando para um lado e para o outro, ele sentia vergonha! E quase que rezava para que o homem voltasse e ele então pudesse se desculpar, por notar tanta sinceridade no pedido do mesmo!
Um outro pedinte veio se aproximando...
- Me desculpa estar aqui tendo que pedir isso, mas olha só moço! Eu não sei mais o que fazer, minha família toda me deixou. Tenho tido que tomar banho no rio, naquela agua suja, e mesmo assim fui roubado! Minha mochila tinha um dinheiro pra comprar minha passagem pra voltar pra minha cidade, as fotos de meus filhos que não vejo há tanto tempo, agasalho....
E depois disso tudo só me sobrou mesmo meus documentos, olha só! Pode ver se o senhor quiser! E, ah... Como tem sido difícil ficar sem ter onde morar! Eu venho andando com essas roupas aqui o tempo todo, não tenho outra! E os outros me tratam de um jeito, olhando de lado... Outro dia um rapaz me perguntou o porquê de eu estar pedindo, falou que eu ainda tava novo e que ainda dava pra começar a roubar! Mas como eu ia fazer isso?! É errado! Por isso, na maior humildade eu venho pedindo essa ajuda, que é só pra poder ajudar um pobre que passa fome mesmo... – dizia o pedinte se curvando de forma como se humilhasse aos pés do outro - Depois disso eu juro que paro de importunar... Mas veja se pode meu senhor, veja se pode um sujeito como eu ficar assim na miséria! O senhor tem ai qualquer coisinha pra me ajudar? – perguntava o pedinte já olhando de cima para baixo esperando alguma resposta das mãos do homem. Esperando que elas se mexessem até a carteira
O homem sentado à cadeira da rodoviária estava embriagado com tanto falatório. Já não comportava mais seus próprios princípios e conclusões, que também estavam abalados por conta do episódio anterior. Mas ainda sobrou tempo para alguma desconfiança que induziu seus lábios a se mexerem perguntando em tom ameaçador
- Mas por que tu não trabalhas?
O pedinte desconcertado olhou para um lado para o outro até que se restabeleceu e falou olhando fixo nos olhos do homem
- Como ia fazer isso meu senhor? Minhas costas doem desde que fui espancado na rua outro dia. Já tentei arranjar trabalho mas ninguém quer dar oportunidade a um sem-teto que só possui os documentos e a roupa do corpo!
Diante da resposta, o homem preferiu dessa vez acreditar no que ouvia. Levou a mão aos bolsos e tirou alguns trocados. Achou uma moeda de 1 real , uma de 0,50 centavos e mais duas de 0,10 centavos. Olhando nos olhos do outro que agora só olhava para as moedas, despejou as pratinhas.
Alguma coisa ele teria feito. Não era má pessoa a ponto de deixar os outros na miséria por querer. Mas a dúvida surgia, será que não havia cometido o erro de jogar o dinheiro fora? Nas mãos da pessoa errada?! Preferiu fingir que esquecia o assunto e seguia tentando disfarçar o tempo.
Mas só pensava. “Ele me olhava fixo. Parecia ter certeza do que falava... Mas pensando bem, parecia mentir! E olha, falou bem mais que um minuto... Era isso o que eu queria?! Aliás, queria? Por que tenho que querer? Ah, mas que cargo venho carregando a toa! E o dinheiro? Poderia ter dado para o pai da menininha ... Mas já é tarde. Como ia saber! Espero, espero que esses meus trocados sirvam para o bem!”
As pessoas indo e vindo, e ele avistou o pedinte que ainda continuava a exercer seu ofício de pedir. Estranho foi perceber que o discurso parecia ser o mesmo. A mesma forma de se portar, o mesmo chacoalhar ágil porém agarrado para dar um ar de desgraça.
Observou também, na sequência, o mesmo se dirigindo a uma barraquinha que vendia salgados, refrigerantes e mais um monte de outras coisas. Viu o pedinte entregar as moedinhas e esperou ansiosamente para ver o que ele iria receber em troca.
Para profundo sentimento de ódio, o homem o viu receber um maço de cigarros e uma caixa de palitos de fósforos da mão do vendedor.
Seus dentes rangiam de tanta raiva e por um instante sentira vontade de se levantar e espancar o desgraçado! Era pobre sim, pobre de alma!
Suspirou e pensou um pouco melhor. Refletiu que era até melhor que ele continuasse nessa vida, de miséria! E que não saísse disso, que sofresse com a desconfiança dos outros e com o desprezo! Esse haveria de ser seu futuro para sempre! Que algum dia, o moço que estava com a filhinha passando fome, passe na frente dele e sinta pena! Por ser tão desgraçado!
Alguns parecem realmente encarar esta tarefa como profissão, e isso é lamentável!
Ao homem sentado na cadeira de plástico da rodoviária, sobra uma tarefa ingrata. Ser obrigado a se envolver com as desigualdades/realidades sociais mescladas com o mau-caratismo de muitos.
A tarefa de todo o dia, torna-se: Tentar identificar quem está falando a verdade, ou, simplesmente ignorar a todos eles.
Enquanto não oferecem curso para tal, usa-se mesmo a comparação.
“Hum... Esse me parece estar falando a verdade”
Dai o jogo recomeça do zero!
Quem é o culpado? Alias, de novo, por que há de se ter culpa?!
Não há tempo para perguntar. O coro já vem vindo
- Senhor, poderia ter um minuto de sua atenção?
Rodrigo Gomes Pereira
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